Descobertas e dúvidas.

Costumo dizer e escrever que a Filatelia é um convite ao estudo.

Atualmente, eu também afirmo que o colecionismo filatélico é uma mistura entre descobertas e dúvidas. Descobertas, pois na medida que investigamos os aspectos visíveis de um selo postal ou de um envelope circulado, ultrapassamos o que nossos olhos mostram e acabamos descobrindo coisas impressionantes sobre cultura, história, etc. Dúvidas, porque esses mesmos aspectos visíveis também revelam "coisas" para as quais não estamos totalmente preparados e, em um primeiro momento, não conseguimos responder, deixando aquela pulga atrás da orelha.

Foi o que ocorreu comigo recentemente, com mais um envelope circulado que consegui com o filatelista e comerciante filatélico Cezar Bolzan, lá de Floripa.

De Munique para Viena.

Como de costume, observe atentamente a imagem a seguir:

Frente do envelope. Coleção do autor.

Aqui entre nós, "trilegal", né?

A seguir, sua descrição:

Envelope circulado entre Munique (27/VII/1937) e Viena (28/VII/1937). Franquia mecânica de 12 centavos para cartas com até 20 gramas em tráfego de longa distância. Flâmula de propaganda: "GROSSE DEUTSCHEN KUNSAUSSTELUNG 1937 / IN HAUS DER DEUTSCHEN KUNST ZU MÜNCHEN / JULI - OKTOBER 1937" (Grande Exposição de Arte Alemã 1937 na Casa de Arte Alemanha em Munique / Julho - Outubro de 1937, em uma tradução livre para o português). No carimbo datador, o título de Munique: "HAUPTSTADT DER BEWEGUNG" (Capital do Movimento, em uma tradução livre para o português).

Descobertas.

Por acaso, eu tive a ideia de consultar no "São" Google o nome do destinatário, Wilhelm Legler.

O resultado foi deveras interessante, pois descobri que Legler (1875-1951) foi um importante artista plástico austríaco da primeira metade do século XX.

Ele nasceu na Croácia, que na época fazia parte do antigo Império Austro-Húngaro, daí sua nacionalidade ser austríaca. Ele estudou na Academia de Belas Artes de Viena, a mesma que recusou as candidaturas de ingresso do jovem Adolf Hitler. Seu professor foi Carl Moll, cuja enteada foi esposa de Legler. Aliás, ele teve um cunhado famoso, Gustav Mahler, cuja esposa era irmã da esposa de Legler.

Wilhelm Legler foi gravador e pintor de paisagens de sucesso. Suas obras participaram de exposições e fazem parte dos acervos de museus e de coleções particulares, a exemplo das pinturas disponíveis para visualização na página da Mahler Foundation.

Arte oficial x arte degenerada.

Detalhe da franquia mecânica do envelope. Coleção do autor.

A franquia mecânica impressa sobre o envelope, em especial, sua flâmula, revela um pouco da história das artes durante o regime nazista. Pois, com a implantação do regime, foi implementada uma política de estado para as artes, dividindo-as em "arte oficial" e "arte degenerada" - Deutschen Kunst x Entartete Kunst.

Em 18 de julho de 1937, foram inauguradas a Casa de Arte Alemã e a primeira Grande Exposição de Arte Alemã, em Munique. Elas seriam o contraponto pedagógico à arte degenerada, que havia sido exposta recentemente ao público alemão.

Segundo a historiadora Vanessa Beatriz Bortulucce (2008), essas iniciativas visaram criar uma arte nacional contra os aspectos internacionalistas das vanguardas artísticas da época.

Dúvidas cruéis.

Áustria foi anexada à Alemanha em 1938, tornando-se uma província da "Grande Alemanha" denominada Ostmark. Como é possível constatar no livro de Lynn Nicholas (1996), a política cultural nacional-socialista também foi estendida à Áustria. Gostaria muito de saber como foi a relação de Wilhelm Legler com isso tudo. Afinal, antes da sua residência ter sido destruída durante um ataque aéreo, em 1945, estava para ser organizada uma exposição acerca dos seus trabalhos. Aliás, qual teria sido o conteúdo transportado pelo envelope?

Porém, como filatelista, incomodam-me os 12 centavos de tarifa. Na época, a Áustria ainda era um país independente e o correto seria uma tarifa de 25 centavos para cartas com até 20 gramas despachadas para o exterior (Ausland). A uniformização das tarifas postais alemã e austríaca ocorreu somente a partir de 1938! Pior, não encontrei uma resposta no meu exemplar do catálogo Michel especializado.

Eis aí as minhas pulgas atrás das orelhas. Entenderam o que eu quis dizer com descobertas e dúvidas?

Referências.

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. A arte nos regimes totalitários do século XX: Rússia e Alemanha. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2008 (História e Arqueologia em Movimento).
NICHOLAS, Lynn H. Europa saqueada: o destino dos tesouros artísticos europeus no Terceiro Reich e na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 

Comentários

  1. Belo post, parabéns. Realmente, a tarifa de 12 Pfennige pra Áustria estava insuficiente em 1937, uma vez que só a partir de abril de 1938 a tarifa alemã se aplicaria à Áustria. Erro de postagem, que foi tolerado pelos correios austríacos. Mas é provável que o Legler recebeu a carta, pois ela foi redirecionada de Viena pra Mannersdorf an der March, perto da atual fronteira com a Eslováquia. Pelo visto, o Legler gostava de passar férias na região. Quanto à pergunta se sua obra foi Entartete Kunst, acredito que não. Como pintor de paisagens, ele não representava perigo algum à estética imposta pelos nazistas. Por último, o conteúdo da mesma talvez nunca se saberá. Mas é certo que o remetente não conhecia o pintor, pois o sobrenome está escrito errado: Segler (depois corrigido a mão).

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    1. Estimado Fabio.

      Muito obrigado pelo seu comentário. Eu realmente fiquei muito feliz e esclarecido com sua mensagem. Esteja sempre à vontade para interagir por aqui.

      Um abraço,

      Wilson.

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