Outros colecionismos que me encantam: os recordatórios.

Esquecer e recordar. Dois aspectos da vida humana desde as épocas mais remotas. Esquecimento e recordação. Inicialmente, duas funções psíquicas, através das quais as pessoas atualizam impressões ou informações de um passado próximo ou distante (LE GOFF, 1996).

Contudo, como ensina o medievalista francês Jacques Le Goff (1996), a formação e a preservação da memória pelos sujeitos vão além da dimensão psíquica e também envolvem fenômenos históricos e socioculturais, além de doses cavalares de relações de poder.

"Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas" (LE GOFF, 1996, p. 426).

Religiões de recordação.

A memória é um componente importante para as práticas e as representações das três grandes religiões monoteístas que surgiram no Oriente Médio durante a Antiguidade e o Medievo: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, sendo as duas primeiras conhecidas como religiões de recordação (LE GOFF, 1996).

Interessa para esta publicação o Cristianismo, em particular o Catolicismo. Durante a Idade Média, ocorreu a cristianização da memória na Europa, tendo como fio condutor a hegemonia cultural, intelectual e religiosa do Catolicismo, revela Le Goff (1996).

No contexto do magistério da Igreja, "o ensino cristão apresenta-se como a memória de Jesus transmitida pela cadeia dos apóstolos e dos seus sucessores. [...]. O ensino cristão é a memória, o culto cristão é a comemoração" (LE GOFF, 1996, p. 445).

Morte e memória.

Ainda em Le Goff (1996), essencialmente, a memória cristã se manifesta na comemoração de Jesus Cristo. Porém, em um nível mais popular, ela também foi expressa através do culto aos Santos e aos mortos.

"A comemoração dos santos tinha em geral no dia conhecido ou suposto do seu martírio ou da sua morte. A associação entre a morte e a memória adquire com efeito e rapidamente uma enorme difusão no Cristianismo, que desenvolveu na base do culto pagão dos antepassados e dos mortos" (LE GOFF, 1996, p. 447).

Foi nesse contexto que surgiram duas práticas que até hoje, século XXI, são importantes para os católicos de todo mundo: recordar e orar pelas pessoas mortas, especialmente aquelas que foram benfeitoras da comunidade ou próximas, tais como os familiares.

Recordatórios.

A invenção da imprensa de tipos móveis, atribuída ao ourives alemão Johannes Gutenberg, durante o início do século XVI, não foi somente um feito técnico, que deu um novo impulso à difusão da palavra escrita através dos impressos (BRIGGS e BURKE, 2016).

Através da narrativa produzida por Asa Briggs e Peter Burke (2016), é possível constatar que a imprensa desencadeou uma revolução nos costumes e no cotidiano que contribuiu com o início do processo de Modernidade na Europa.

Os primeiros recordatórios foram impressos durante o século XVII, na mesma época em que uma novidade provocou ainda mais a sede das pessoas que pela palavra escrita: os jornais. Os Países Baixos são considerados o "berço" dos recordatórios, conhecidos à época como Bidprendtjes.

Meio de apoio à alma do (a) falecido (a).

Um recordatório é um cartão impresso acerca de um (a) morto (a), que é distribuído às pessoas enlutadas pelos seus familiares no contexto dos rituais fúnebres.

Trata-se, originalmente, de um costume católico em que eram manuscritas em folhas de papel ou pergaminho o nome do (a) falecido (a), o dia e a hora em que morreu, além de um pedido de orações pela sua alma (TOTENZETTEL, 2021).

Por volta de 1670, os recordatórios passaram a ser impressos, sendo a partir de 1730 ilustrados com imagens de santos (as) e demais temas devocionais. Inicialmente, a prática de imprimir e distribuir recordatórios se restringiu a Amsterdã. Dos Países Baixos, os recordatórios se espalharam por outros países da Europa, e mesmo da América (TOTENZETTEL, 2021).

"Como regra, os recordatórios recebidos são colocados no livro de orações para que os mortos sejam sempre lembrados e uma oração especial seja dedicada a eles quando vai à Igreja", explica Alois Lederer, 2021, p. 1). Embora distribuídos aos vivos, os recordatórios são destinados às almas das pessoas falecidas - expiação dos pecados; passagem pelo Purgatório; salvação (TOTENZETTEL, 2021).

Alemanha.

Embora seja um costume católico europeu, é comum encontrarmos no mercado de antiguidades recordatórios alemães, especialmente, impressos e distribuídos durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945). O autor coleciona e estuda recordatórios alemães relativos a esse conflito.

Conhecidos como Sterbebilder (ou "imagens de morte", em uma tradução literal para a língua portuguesa), os primeiros recordatórios apareceram no que hoje é a Alemanha através do atual estado da Baviera, durante a primeira metade do século XIX (LEDERER, 2021).

Segundo Alois Lederer (2021), a impressão e a distribuição de recordatórios no território alemão foram impulsionadas pelos contextos das Campanhas de Ferro e Sangue (1866 - 1871) e da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918), inclusive com inovações gráficas, a exemplo da introdução de retratos fotográficos dos falecidos, que poderiam ser colados ou impressos sobre o cartão.

Recordatório do Cabo Josef Hartl, morto em 1918. Coleção do autor.

Após a Primeira Guerra Mundial, os recordatórios alemães sofreram alterações nos seus aspectos escritos e visuais. Orações, poemas ou frases de grandes pensadores ganharam visibilidade, assim como maior destaque para os retratos dos seus falecidos (TOTENZETTEL, 2021).

Recordatórios alemães no contexto da Segunda Guerra Mundial: apontamentos.

Nesta publicação, serão abordados alguns aspectos dos recordatórios de militares alemães que morreram durante a Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945). O que não significa que, durante esse conflito, que os familiares de civis falecidos (morte natural ou não) não tenham providenciado seus respectivos recordatórios. A escolha é justificada pelo recorte colecionado pelo autor.

De uma forma geral, são recordatórios semelhantes aos da Primeira Guerra Mundial, com a seguinte composição:


Um exemplo: o Cabo Hans Neumaier:

Frente do recordatório. Coleção do autor.

Verso do recordatório. Coleção do autor.

O Cabo Hans Neumaier nasceu em 24 de dezembro de 1915. Era filho de um alfaiate em Vilsbiburg, uma cidade localizado no estado da Baviera.

Ele serviu em um Regimento de Caçadores Alpinos e participou de campanhas militares na ÁustriaTchecoslováquiaPolôniaBélgicaFrançaGréciaCreta e União Soviética. Portador da Cruz de Ferro de 2a. Classe e do Distintivo de Assalto de Infantaria. Morreu em combate, no dia 17 de setembro de 1942, ao sul do lago Ladoga, na República da Carélia, noroeste da Rússia.

No verso, uma ilustração recorrente em outros recordatórios: a cruz de bétula sobre uma cova rasa, uma das representações usadas nos recordatórios para representar a morte em combate.

Morte no cativeiro.

A Segunda Guerra Mundial na Europa foi encerrada em 8 de maio de 1945, com a rendição incondicional da Alemanha. Como é possível constatar em trabalhos especializados, tais como a síntese de Antony Beevor (2015), milhares de soldados alemães permaneceram até o início da década de 1950 no cativeiro soviético.

Portanto, há recordatórios de 1945, 1946 e mesmo 1947 de prisioneiros de guerra alemães que faleceram em campos situados na União Soviética, como é o caso do Cabo Josef Krieger, que faleceu em 19 de fevereiro de 1947, e um Russischer Kriegsgefangenschaft, aos 43 anos de idade.
 
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Referências.

BEEVOR, Antony. A Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Record, 2015.
BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016
LEDERER, Alois. Seit 1840 erinnern in Bayern Sterbebilder an die Verstorbenen. Disponível em: <http://www.labertal.com/igeleien/20_2004/20_26sterbebilder.html>. Acesso em: 12 jan. 2021.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996 (Coleção Repertórios).
TOTENZETTEL. GenWiki. Disponível em: <http://wiki-de.genealogy.net/Totenzettel>. Acesso em: 12 jan. 2021.

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